O meu epitáfio

Ontem, 03 de fevereiro de 2021 , perdi mais dois amigos pelo Covid 19. O Gilberto boiadeiro que trabalhou comigo na CBA e a dona Berenice, que foi uma quituteira de mão cheia em Catalão. Além deles, essa doença já levou embora alguns outros amigos e familiares desde o ano passado. Como a Márcia, minha querida prima irmã que cresceu conosco em Londrina e meus tios Seba e Kentian. Além de Marcos , um primo de coração .

Agora são seis horas da manhã em BH, por enquanto temos um céu de brigadeiro, nem parece que estamos em fevereiro. Desde às cinco horas, os meus curiós cantam estimulados pelos passarinhos que cantam soltos lá fora, como: bem-te-vis, sabiás, maritacas , rolinhas e pombas carijós. O vento frio que sobrou da madrugada, ainda sopra em direção à janela da sala do apartamento onde escrevo este texto. A janela está metade aberta, com um aviso providencial pregado nela, escrito à lápis numa fita adesiva de papel , para que assim permaneça, pois há sempre o risco de um gavião faminto invadir o espaço e atacar a gaiola do Poveda Jr, o meu curió preferido .

A cidade ainda não acordou . O prédio de sete andares em construção , vai aos poucos surgindo ao fundo do nosso prédio, na paisagem já congestionada do nosso entorno . Os operários da obra ainda não começaram a trabalhar com seus martelos e serras elétricas, não emitindo por ora os seus típicos ruídos irritantes.

Aparentemente, tudo continua como antes. Ledo engano ! Há um inimigo invisível , sorrateiro e oportunista rondando a região. Ninguém pode vê-lo , senti-lo ou tocá-lo , mas como uma alma penada diabólica onipresente, ele espera pacientemente a primeira oportunidade para atacar os incautos e descrentes. Os precavidos, também alvos dele em potencial , aos poucos vão se cansando de ficarem entrincheirados aguardando a chegada do inimigo e na primeira pescada de cabeça, são apanhados de surpresa.

Já os descrentes, embora percebendo familiares, amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos sucumbindo pela doença, teimam em não acreditar no poder do inimigo. Ele, por sua vez, é ardiloso e inteligente. Em alguns atira inofensivas bolinhas de papel e em outros balas de verdade e de borracha, deixando todos confusos .

Nunca a possibilidade real da morte ficou tão evidente para mim e acredito que para muitos de vocês também. A vida ficou mais frágil do que aparentemente já era.

Concluí então, ser este o momento ideal para deixar registrado no dia de hoje, o meu epitáfio e também as minhas instruções post mortem . Me sinto um privilegiado, porque ao contrário dos passageiros do jumbo 747 do fatídico voo 123 da Japan Air Lines, que tiveram apenas alguns minutos para escrever os seus bilhetes de despedida, eu tenho o dia de hoje para fazê-lo. Ou melhor, acho que tenho …

Nesta pandemia, tomei uma decisão pessoal de policiar-me para não fazer mais planos de futuro. Viver um dia de cada vez e olhe lá. O tempo se tornou ainda mais escasso e raro do que já era, como descrevi na crônica O Tempo, as Jabuticabas e o Tornado. Embora o futuro jamais fosse garantido a ninguém, tive sempre a ilusão de que havia uma boa chance dele acontecer . Hoje com o Covid 19, não mais !

Antes porém de escrever o meu epitáfio, vou citar alguns exemplos espirituosos de epitáfios de personalidades conhecidas:

Aqui jaz o que era mortal em Isaac Newton

Aqui jaz Fernando Sabino , aquele que nasceu homem e morreu menino

E agora, vão rir de que ? Chico Anísio

Aqui jaz, muito a contragosto , Tancredo de Almeida Neves

Viciado, enfim pó. Marcelo Frommer

A seguir o meu epitáfio:

Aqui jaz Rui Sergio Tsukuda, apenas um anônimo que enganou muito bem a todos.

Antes que pensem que eu tive uma vida dupla como contraventor da 171, lembrando um pouco o Dr Jekylll e Mr Hyde. A mensagem póstuma acima é reconhecer que embora eu tenha sido muito bem avaliado na minha vida pessoal e profissional pelas pessoas. Tenho que admitir o meu conhecimento raso e um desempenho apenas regular nos papéis de filho, esposo, pai, engenheiro e cidadão. Acho que vendi bem a minha imagem durante a minha vida, em marketing devo ser muito bom !

E a seguir as minhas instruções post mortem :

-Doem todos os meus órgãos possíveis, quero ficar com a doce ilusão de continuar vivo por mais um tempo ainda.

-Quero ser cremado. Odeio a ideia de formigas entrando nos meus ouvidos …

-Vistam o meu corpo com uniforme de tenista, nada de terno por favor. Não combina comigo e é muito quente!

-No velório, caso haja um, deve ser servido a todos pastel de carne e de queijo com Fanta laranja com açúcar que eu sempre adorei, mas não pude comer muito porque engorda !

-Para não dar muito sono aos participantes do velório, sirvam-lhes café . Mas o Café Catalão, que é especial para mim.

-Ao contrário da minha mãe, que expressou o desejo de ter apenas os filhos, netos e noras no seu velório e foi atendida. No meu, liberou geral , até papas-defuntos são bem-vindos.

-Para a música de fundo no velório, tocar em repetição na minha caixa de som Charge JBL vermelha via Spotify, as seguintes canções : Catavento e Clube da Esquina 2 de Milton, Garota de Ipanema de Vinicius, Insensatez de Jobim na voz de João Gilberto, A Hora e a Vez de Zé Renato, Merry Christmas Mr Lawrence de Sakamoto e finalmente L’ été 42 de Legrand , esta última a canção da minha vida .

-Para finalizar, no culto ecumênico ao final do velório, meu cunhado Wanderley, que é quase pastor, deverá fazer a abertura da cerimônia, ele é muito bom nisso . Seguido da Irmã Sheila , minha querida cunhada casada com Jesus. Por último, o Cleonaldo , primo irmão espirita , deverá fazer o encerramento da cerimônia. Acredito que com os três de diferentes credos me desejando uma boa passagem, aumenta e em muito as minhas chances de chegar menos ansioso à prova do juízo final , ir bem e faturar um Fuscão , como profetizou Gonzaguinha.

Entretanto, espero de coração que este seguro morra de velho . Mas como a minha morte, inevitavelmente acontecerá um dia, fica aqui de antemão já registrado o meu epitáfio.

ET: Segue abaixo o poema “Quando Chegar ” da minha poeta favorita Ana Cristina Cesar, o qual entendo ser oportuno para o momento.

Rui Sergio Tsukuda – fevereiro/21

https://aposenteidessavida.com/

quando chegar

Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso.

julho/67

19 comentários em “O meu epitáfio

    1. Rui, parabéns por estar escrevendo, isso é muito bom e você é muito bom nisso!
      Fico triste de você ter estas opiniões sobre esta epidemia, fico triste de pessoas próximas a você e de mim poderem ter te causado esta desesperança, desesperança esta falsa, pois esta doença numa foi e nunca será a mais grave e contagiosa que convivemos; H1N1, e dengue matam mais do que esta e esta, acreditando ou não, tem tratamento e se acreditar nisso, viverá muito e muito ainda. Não se deixe levar pelo pânico que muitos querem e continue sua vida normalmente, somente com mais cuidados de higiene que já fazíamos.
      Me entristece muito vê lo assim e espero que acredite no que digo, pois sei o que estou falando! Isto já era pra ter acabado não fosse por uma mídia e políticos do mal, mas não existe a menor possibilidade dele vencer, pois Ele está do nosso lado.
      Fico triste também de jovens médicos e outros quase lá, não estudarem esta doença como deveriam.
      Abraços meu amigo e acredite nEle!

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      1. Oi Arthur , obrigado pela força . São muitas informações e opiniões. divergentes nesta pandemia . Veja que beleza , através do Felipe e a Fofa ganhamos eu e a Virgínia , dois grandes amigos você e a Ieda . Grande abraço

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  1. Rui, parabéns pela iniciativa. Você é uma pessoa muito especial e com um talento enorme. Acho que sou o mais novinho do grupo do “Dinos”, mas tenho muito orgulho e admiro muito vocês. Lembro que quando comecei a ter mais liberdade com você, todo ano eu te cobrava as cartinhas de Natal. Eu adorava ler e esperava ansioso pelo próximo ano. Mas agora estou feliz, pois vou poder ler suas crônicas durante o ano todo, e não somente no Natal. Que Deus continue te abençoando e lhe dando muita saúde para você continuar escrevendo e trazendo suas mensagens de muita sabedoria.
    Grande abraço do seu amigo
    Rodrigo Santos (Rodriguinho)

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  2. Olá! Quanto aos últimos pedidos temos algumas coisas em comum: também quero que meus órgãos sejam doados pelo mesmo motivo, quero que seja servido café e quero ser cremada…
    Quero somente pessoas as quais realmente querem estar ali. Não é necessário irem por obrigação.
    Já deixei dito para meu marido que não quero ninguem falando alto durante a cerimonia fúnebre e tumultuando minha passagem.
    Quero partir com vivi: em constante reflexão.

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    1. Valeu Fábio ! Eu tô igual as mulheres de antigamente … dois filhos em cada mão, um na barriga e outro no pensamento… Só que no meu caso são os textos, você foi abrir a caixa de Pandora ! hahaha

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