O Duas Alegrias

O Duas Alegrias, o qual me refiro no título do texto, é um sítio. Usei a metonímia, uma das figuras de linguagem da língua portuguesa para estimular você que não gosta do campo a pelo menos, chegar até aqui e quem sabe continuar comigo até o final desta crônica.

Tem uma outra metonímia que tenho ouvido, a qual me irrita profundamente… Era comum ao final da reunião mensal da área comercial na empresa em que trabalhei recentemente, o João, nosso chefe nos sugerir: – BORA COMER UM JAPA? Imediatamente todos os presentes à reunião dirigiam um olhar guloso em minha direção e em seguida gargalhavam.

Eu que já tenho casca grossa para esse tipo de brincadeira, pois sou minoria desde que me percebi gente, respondia sério com uma outra metonímia: – TÔ FORA , PREFIRO OUTBACK!

Mas voltando ao sítio … O Duas Alegrias é um sítio composto de dois terrenos de cinco e dois hectares, que adquiri em 2011 na região de Desterro de Entre Rios, aqui em Minas Gerais.

Esse nome, foi em homenagem à Virgínia, minha adorável esposa, que foi contrária à sua compra desde o início. Então, tive que avançar o sinal e comprá-lo sozinho, batizando-o ironicamente de Duas Alegrias, cujo termo se refere a uma aquisição equivocada de um mico ou um mau negócio, onde há somente duas alegrias, uma na compra e outra na venda.

Notando que eu estava mesmo decidido na compra do sitio, Virgínia me perguntou se poderia pelo menos ir comigo a Desterro para a celebração do contrato de compra e venda.

Percebendo que era uma estratégia inteligente dela para impedir de alguma forma o negócio, fui enfático:

– NÃO, meu bem, desculpe- me, mas desta vez você é persona non grata nessa reunião!

E complementei: – Veja bem meu amor, a vendedora e atual proprietária, a Dona Laura, está muito feliz, depois de dois anos finalmente desencalhar o imóvel. Eu o comprador, estou ainda anestesiado pela primeira alegria e por último, o corretor, este não cabe em si de tanta felicidade, já que a venda de propriedade rural nestes tempos, você sabe, está muito difícil.

– Então se você for lá, será a única pessoa a levar fluidos negativos à reunião. Desculpe-me mais uma vez.

Nisso, ela já muito contrariada, mas segura com o copas ou escopeta nas mãos, trucou com confiança e alguma ironia:

– Rui, você se esqueceu que somos casados em comunhão parcial de bens e sem a minha assinatura, o negócio não tem validade oficial?

Eu por minha vez, ainda mais confiante com o zap, paus ou gato nas mãos respondi:

– Não meu bem, você que está enganada. Para a compra de um imóvel, eu não preciso necessariamente da sua assinatura. Mas para a sua venda sim, você tem razão.

– Portanto, você queira ou não, vou partir agora a Desterro e comprar o sítio sozinho. Estou decidido e ponto final!

Na época, tínhamos 19 anos de casados. Essa foi a primeira vez que criei coragem e dei o meu grito de independência às margens do Ribeirão Arrudas!

Assim como o personagem Campos Lara do romance de Orígenes Lessa, O Feijão e o Sonho , eu sempre fui o sonhador da relação e o meu benzinho, sempre fez o papel da Maria Rosa, a feijão-pé-no-chão-segunda-feira-de-manhã . Esse será um tema de uma crônica que postarei em breve por aqui. Aguardem!

Uma vez assinado o contrato de compra e venda, dei um sinal e o restante seria pago na assinatura do contrato definitivo de compra e venda, caso toda a documentação do sítio estivesse regularizada. O que demoraria três meses mais ou menos.

A sede do Duas Alegrias tem uma casa de três quartos de 140 m2, que estava bem caidinha na época. O galinheiro, horta, chiqueiro e lagoa estavam quase irreconhecíveis, além do pomar que estava completamente tomado pelo mato. Uma boa reforma era urgente e necessária. Estávamos no mês de junho, em pleno período de estiagem aqui na região, época ideal para reformar o telhado principalmente, antes das primeiras chuvas que chegam em setembro ou outubro.

Mais prudente contudo, seria aguardar a documentação ser regularizada primeiro, para depois investir na reforma do sítio. Em caso de algum entrave nesse processo, que impedisse a transferência da propriedade para o meu nome, eu receberia de volta o sinal já pago. Por outro lado, se eu assumisse o risco de bancar a reforma nessa situação, e o entrave se confirmasse, eu perderia todo o capital dispendido na reforma do sítio, recuperando apenas o sinal do negócio.

Como todo portador de ansiedade grave, não passava pela minha cabeça esperar mais . Não via a hora de logo desfrutar do sitio. Inclusive, no mesmo dia da assinatura do contrato de compra e venda eu adquiri na região, a minha primeira égua MM marcha picada, a Luma do Duas Alegrias.

Então, caso o negócio desandasse, além de perder o dinheiro da reforma, a Luma ficaria sem pasto .

Mesmo com esse risco, criei coragem e fui “anunciar” mais este investimento extraordinário, fora do orçamento anual, na reunião da família.

Para a minha surpresa, a Virgínia que no meu entendimento deveria estar ainda muito irritada com o meu grito de independência inédito, estava serena. Ela não só aprovou o investimento na reforma, como ainda pediu à tia Cena parte do montante emprestado. Me ajudou também a convencer os meninos da importância de eu realizar o meu sonho.

Apesar de muito surpreso com a sua decisão inusitada, comemorei ! Depois de um tempo, fiquei sabendo o porquê da sua decisão surpreendente. A tia Edwiges, irmã da tia Cena, que mora em Goiânia, deu a ela a sábia recomendação:

– Virgínia, minha filha, deixa o Rui com o sítio dele, deixa ele gastar nele o que quiser. Muito melhor ele correr atrás de vaca e égua, do que de um rabo de saia! Pense bem nisso!

Salvo pela queridíssima tia Edwiges e financiado pela tia Cena – pelas quais sou eternamente grato – iniciei a reforma do sítio. Enquanto tocava a obra, eu acompanhava também com muito interesse o desenrolar do processo de regularização das terras. Um olho no peixe e outro no gato!

Neste período entretanto, recebi a triste notícia que a Dona Laura não estava nada bem de saúde e havia se internado na Santa Casa, aqui de BH. Ao saber disso, fui imediatamente visitá-la.

Confesso que na minha oração a Deus no leito de hospital, joguei limpo com Ele dizendo para que me perdoasse, porque a minha oração para a recuperação da Dona Laura era carregada de interesse .

Não sei se pelas minhas preces ou pelas dos familiares e amigos – que eram muitos – fomos atendidos e ela se recuperou em pouco tempo. Comemoramos muito quando finalmente ela retornou para casa.

Um semana depois, numa terça feira, Fabio, o dono do Cartório, me ligou avisando que a coleta de assinaturas do contrato definitivo de compra e venda ocorreriam em dois dias, na quinta feira.

Todos os 11 proprietários do sítio – filhos, filha, noras, genros , uma neta – cuja mãe já havia falecido – e a própria Dona Laura , já haviam sido avisados por ele. Inclusive alguns deles, se deslocariam de São Paulo para Minas exclusivamente para a assinatura desse contrato.

Mesmo sem consultar a minha agenda daquele dia, confirmei a minha presença. Porque se tratava de uma oportunidade única, como se fosse um eclipse solar total. Não poderia perdê-lo de jeito algum.

Mas ao consultar a minha agenda, percebi que eu tinha uma reunião muito importante nesse dia, com o meu chefe Marcus Antonius e o presidente da empresa.

Ao avisá-lo que faltaria à reunião, ele ficou muito irritado e considerou uma grande irresponsabilidade minha esse ato. Complementou dizendo que ele jamais em sua carreira internacional, fizera uma insubordinação como essa! Após ouvir o seu sermão, respondi com firmeza:

– Marcus Antonius, lamento muito decepcioná-lo, mas vou ter mesmo que faltar a esse compromisso. Se tomei essa decisão é porque tenho fortes motivos para isso.

Excusez-moi monsieur! Apelei para um pedido de desculpas na sua língua materna para tentar amolecer o seu coração. Mas ele, ainda muito decepcionado comigo, me deixou falando sozinho e saiu da sala. É, a minha papaína não funcionou naquele dia!

Ao chegar no cartório da cidade no dia combinado, todos já nos aguardavam ansiosos. Um a um, os herdeiros foram entrando na sala para assinar as três vias do documento e receber da Virgínia o seu cheque correspondente.

Um cuidado extra foi tomado pelo Fabio para que dois irmãos que não se bicavam, evitassem se cruzar na sala. Um entrevero ou uma eventual briga, era a última coisa que queríamos que acontecesse naquele momento. Ele cuidadoso, escalou os dois desafetos em horários diferentes e tudo correu bem.

Quando chegou a vez da Dona Laura, a última a assinar. Fiquei bem à sua frente, acompanhando atentamente a sua assinatura nas três vias do documento. Era a cereja do do nosso bolo! No começo foi tranquilo, descansada, ela conseguiu assinar as duas primeiras vias com boa fluidez.

Mas ao assinar a terceira e última via do documento. De repente, ela parou de assiná-lo bem no meio do seu nome, surpreendendo a todos. LAURA RE… e largou em seguida a caneta sobre a mesa!

Eu surpreso, pensei no pior: – Xiii deu zebra, que azar meu Deus, bem no final do jogo, já nos acréscimos do juiz no segundo tempo. Ela provavelmente se arrependeu da venda por algum motivo e quer desistir do negócio!

Paulinho, meu amigo que é também corretor de imóveis, havia me relatado ter presenciado cenas parecidas como essa, quando um dos proprietários, já no cartório, simplesmente se recusam a assinar o contrato definitivo de compra e venda. Nesse caso, o negócio é desfeito e todo o trabalho do corretor é perdido.

Eu já tenso e com pingos de suor escorrendo pela minha testa e encharcando os meus óculos, perguntei:

– Dona Laura, o que aconteceu? Ela levantou o rosto e olhando em minha direção disse calmamente:

– CANSEI RUI, me arruma um copo d’água, por favor filho!

Ela nem havia terminado a frase, Fábio já retornava com um copo d’água nas mãos, aflito. Depois de bebê-lo, ela ainda descansou por mais um minuto, deu uma respirada profunda, pegou a caneta novamente e completou: ZENDE MACHADO!

Iuhuuuuuu! Fábio e eu sem contermos a nossa emoção, comemoramos juntos nos abraçando como Pelé abraçou Jairzinho, o Furacão da Copa no México em 70, tamanha era a nossa alegria e sobretudo alívio naquele momento.

No mesmo ano, como planejado, antes das águas chegarem, eu já estava curtindo o sítio. E desde então, lá tem sido o meu refúgio onde leio, ando à cavalo , tiro leite da vaca , pesco, proseio com os vizinhos e escrevo meus textos. Estou portanto, ainda na minha primeira alegria com ele.

Apesar de todas essas maravilhosas atrações do sítio, aqui em casa , ir para a roça é um programa de baixa atratividade, ou melhor, um programa de índio como eles dizem. Ficar sem sinal de celular, internet e TV, os deixam muito ansiosos e angustiados. Sinal dos tempos!

A seguir uma passagem bem pitoresca que aconteceu numa das minhas inúmeras idas ao Duas Alegrias:

Ao iniciar os três quilômetros da estrada de terra que dá acesso ao sítio, dei carona a um senhor que não conhecia. Lá, ao contrário de BH ou nas grandes cidades, ainda é comum dar carona a estranhos.

Assim que ele entrou no carro, apenas me cumprimentou com um ‘bom dia ” bem baixinho e tímido, no que eu prontamente correspondi. Engatei a marcha do carro no D novamente e continuei o meu caminho.

Como notei que ele não me dava lado – aqui em Minas chamamos assim o sujeito que não dá muita abertura numa prosa – tomei a iniciativa e puxei conversa para quebrar o gelo.

Me conta amigo, como estão os preços das terras por aqui na região? Ele de pronto respondeu:

Rapaiz, até que os preço das terra tava baixo sô ! Mas aí de um tempo pra cá pareceu um JAPONÊIS que saiu comprando tudo por aqui … Já comprô dois sitio e ouvi dizer qui o omi quer comprá mais. Tão dizendo por aí qui ele é muito rico, sô! Agora os preços tá lá nas altura, até o meu parenti di Mairiporã qui tava interessado nuns hectare disistiu por conta dele!

Nisso, eu parei o carro, engatei a marcha no P, levantei os meus óculos escuros Rayban que usava e olhei em sua direção bem nos seus olhos e disse:

– POR ACASO, ESSE JAPONÊS NÃO SOU EU NÃO SÔ?

Ele muito sem graça respondeu:

– É OCÊ MÊMO, CÊ MÊMO! E rimos muito, o bastante para derreter o gelo de vez!

Para finalizar, alguém de vocês pode ter ficado curioso(a) para saber como ficou a minha relação com o Marcus Antonius depois da minha insubordinação. Posso lhes contar por enquanto, que a nossa relação azedou de vez. Mas esse é um tema de outra crônica que eu postarei por aqui em breve, sô!

Rui Sérgio Tsukuda – fevereiro/21

https://aposenteidessavida.com/

8 comentários em “O Duas Alegrias

  1. Ah, Rui, muito bom! Dei boas risadas aqui, sozinho, lendo mais essa crônica. Gostei das duas insubordinações: com o chefe e com a esposa! Que coragem! Rs… Deu mais vontade de conhecer esse lugar!

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    1. Oi André , você vai conhecer o Duas Alegrias em breve . Vamos fazer lá um sarau , você de sax e teclado e eu na viola … Mas como não tenho o seu ouvido relativo , vou treinar meu repertório antes. Não deixe de conferir a crônica : Meu ouvido relativo e absoluto ! abraço

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  2. Oi Rui, de tão boa que tá sua crônica, li num piscar de olhos e tornei a ler de novo!! Agora…quem tem uma tia Edwiges e tia Cena tá feito na vida, né? Rsrsrs
    Abraços!!!

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  3. Rui, parabéns de novo; continue serrote a escrever.
    Dia desses vamos conhecer o sítio lá.
    Contra aquele estória da seu cavalo e a grana, é muito boa, rsss.
    Abração

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