E Lalado não conheceu o mar…

Aqui nas Minas Gerais, Antônio é chamado de Tonho ou Toninho, Joaquim é Quinzinho e Geraldo é Lalado. Se for Geralda fica Lalada.

Pois bem, Lalado ou Geraldo Cândido Resende, foi por 12 anos meu amigo e parceiro do Sítio Duas Alegrias, na localidade Cerrado em Desterro de Entre Rios. Por ser meu vizinho, a dois sítios de distância, ficava no jeito para ele cuidar para mim dos animais e da criação.

Talvez seja interessante explicar aos meus leitores urbanos, que no glossário da roça, criação são as vacas, bois e galinhas. Já os animais são os cavalos, éguas, burros e mulas. Com a invasão das motos ocorrida também na roça, os animais ficaram bem fora de moda. Claro que aí, não estão incluídos os cavalos de raça de elite das raças Mangalarga Marchador e Campolina e dos Jumentos da raça Pêga da região, que valem fortunas. Mas esse universo, é bem distante do nosso…

O Duas Alegrias, com 7 hectares, não gera renda o bastante para sustentar uma família de colonos, tampouco pode ficar sem ninguém olhando. Com a parceria do Lalado, eu tinha uma pessoa de confiança que zelava pelo sítio. Ele por sua vez, tinha o leite das minhas vacas e a cesta básica que eu fornecia a ele mensalmente. Era uma relação conhecida no mundo corporativo de ganha-ganha.

Para os vizinhos do Cerrado, eu era o patrão do Lalado. Mas a nossa parceria transcendia hierarquias, estratos ou posições. O lema da nossa parceria era: ” Eu te ajudo, você me ajuda!” e “Uma mão lava a outra, e as duas lavam o rosto!”

Vejo muita gente da cidade suspirando quando ouve de mim que eu tenho um sítio. Mas ter um sítio é igual a ter despesas, muitas despesas e quase nenhuma receita. Sempre vai ter uma vaca picada por uma cascavel, uma cerca quebrada por um boi namorador assanhado do vizinho ou um poste de luz caído na última ventania.

Como Lalado me dizia. ” Fazenda é fazendo o tempo todo… E o trabalho nunca termina.”

Quando eu recebia uma ligação dele pelo celular, meu coração já disparava… O que foi dessa vez Lalado? ” A cerca divisa com a Dona Tereza caiu, Rui …. Fazenda é fazendo, né?”

Ele, aposentado por invalidez por conta de um aneurisma no cérebro, que se rompeu e por um milagre de Deus, foi salvo no último minuto da prorrogação do segundo tempo.

Ele contava para mim com uma ponta de orgulho, que no trajeto de Desterro a BH , foi desenganado pelo médico que o acompanhava na ambulância. Por um momento, o profissional cogitou em desistir dele e retornar para a cidade de origem. Mas não se sabe porquê, lhe contou depois o médico, ele mudou de ideia e insistiu levá-lo até o Hospital João XXIII em BH. Foi a sorte dele.

Depois da cirurgia no cérebro, que lhe rendeu uma discreta depressão no crânio, e muitos dias na UTI entre a vida e a morte, ele retornou para a sua rotina da roça.

“Mas Lalado, quando estava em coma, ocê viu o túnel? Encontrou com o Senhor? Não viu nenhuma luz?”

“Que nada Rui, não vi foi nada! Só fiquei com vergonha depois, quando percebi que as enfermeiras tinham me visto pelado.”

Como muitos mineiros, ele não teve a oportunidade de estudar. Ainda no primário, sua mãe o tirou da escola para ajudar nas despesas da casa. Passou então a viver no curral, aprendendo a cuidar de vacas e cavalos. Virou um retireiro e um cavaleiro de mão cheia!

Contava que durante muitos anos acordou às 3:30 h com chuva ou sem ela, de segunda a segunda. No curral ordenhava mais de 38 vacas, duas vezes ao dia e frisava que naquele tempo, a ordenhadeira mecânica ainda não tinha chegado naquelas bandas.

Logo se casou e teve 7 filhos. Contava orgulhoso que embarrigava dois de cada vez, como se fertilidade fosse sinônimo de virilidade. Depois dos filhos crescidos, ele se separou da mãe dos meninos e ficou distante da família. Dizia que a relação com os filhos e a ex -esposa era complicada. Mas vez por outra, um ou outro filho em apuros, era mandado para morar com ele uns tempos até se recuperarem, para depois, voltarem à casa da mãe em Congonhas.

Conheci o Geraldo quando ele já tinha 50 anos. Ele já estava na sua segunda vida pós aneurisma.

Eu dizia a ele: ” Lalado, aproveite o que ocê ganhou de Deus! Não desperdice esse presente precioso com bebidas e cigarros. Ocê voltou pra cá não foi à toa…”

O vinho Cantina da Serra era o seu fraco. Esse vinho tinto suave super doce ganhou o seu coração. Ao experimentá-lo uma vez, me lembrei do vinho que meu pai comprava em garrafas transparentes sem rótulo dos poucos colonos italianos de Londrina e pensei: ” Pra mim acho que dá um bom sagu, nem precisa colocar tanto açúcar “.

Geraldo sempre me contava que bebia para esquecer os problemas da vida. Quando ele tomava o seu Cantina da Serra a noite toda, dançando sozinho, embalado ao som dos modões sertanejos, ele esquecia da solidão do Cerrado, da sua tristeza de ter perdido a sua mãe querida e das consequências do recente câncer de próstata. Ao acordar de madrugada para o meu terceiro xixi da noite, eu ouvia o barulho do seu som e pensava: ” Ainda bem que estou a dois sítios de distância da casa dele…”

Cruzeirense não muito convicto, para me agradar fingia torcer pelo Galo quando assistíamos aos jogos na TV no sítio do Daco, outro vizinho amigo também alvinegro de nome Geraldo, que fugiu à regra e não tem apelido de Lalado.

Lalado, odiava pescar. Achava muito chato, com pouca emoção. Mas para puxar o saco do seu patrãozinho, ia comigo. Mas era tão impaciente, que até a minhoca eu tinha que colocar no anzol dele.

Agora o que ele era bom mesmo era mexer com os animais. Selava a Luma rapidinho, enquanto eu levava pelo menos 15 minutos para arriar a Paloma. Com ele percorríamos toda a região do Cerrado por horas, jogando conversa fora e não vendo o tempo passar.

Com o tempo, a nossa parceria comercial se tornou uma forte amizade. Eu contava a ele como era bom conhecer outros países e pessoas de outras culturas. Depois de ouvir a minha fala animada por meia hora, ele respondia: ” Rui, ocê sabe de muita coisa e tem café no bule”

Quando passava um jato no céu eu dizia a ele: “Geraldo, eu vou te amarrar e te enfiar num avião como esse para um passeio bate e volta a São Paulo, só pra ver a sua cara quando o avião decolar e pousar.”

Ele respondia sem acreditar no que eu dizia: ” Cê tá doido! Num monto num bicho desse de jeito nenhum. Se o motor dele parar, a gente cai e morre. Os meus pés não saem desse chão de jeito nenhum!”

Com a negativa dele repetidas vezes, mudei o meu alvo e passei a insistir para levá-lo até Cabo Frio para ele finalmente conhecer o mar.

Eu dizia: ” Geraldo, eu não posso deixar ocê morrer sem ver o mar! Ele é lindo e não acaba nunca … O meu prazer será fazer um video com você experimentando a água salgada do mar e mostrar a sua cara de espanto pra todo mundo aqui no Cerrado! “

Ele respondia com o seu bordão: ” Ocê tá doido. Mas obrigado por tentar, coração!”

Aqui em Minas, não é surpresa topar com gente que ainda não conhece o mar. A opção mais próxima é a região dos Lagos no Rio de Janeiro, mesmo assim está a quase 500 km de BH. As praias de Vitória no Espírito Santo e Ubatuba em São Paulo são outras opções dos mineiros.

No ano passado, quase consegui embarcar o Lalado no meu carro para Cabo Frio. Mas na última hora, ele refugou, como boi bravo refuga no embarque do caminhão pro abatedouro.

“Mas por que Lalado? O passeio é 0800, eu pago tudo! E na estrada, a cada hora eu paro o carro pro cê fumar e no hotel, vamos ficar em apartamentos separados pro cê pitar à vontade… “

” É que eu sou tímido, Rui. Tenho vergonha e não vou saber me comportar nos lugares, desculpa. E nem calção de banho eu tenho…”

Há duas semanas, num sábado, tomei um susto danado quando o Tirrela, outro meu vizinho, me chamou urgentemente para socorrer o Lalado. Ele de repente, do nada, não conseguia mais sentir e mover as pernas. Além disso, sentia uma dor fortíssima na coluna.

O Daco pensou não ser nada demais, apenas ressaca da última bebedeira dele. Mas era sério! Poucas vezes na minha vida, corri tanto numa estrada de terra a caminho do pronto socorro, com o meu amigo deitado no porta malas do carro e gemendo de dor.

Do pronto socorro de Desterro, Geraldo foi transferido pelo SAMU para um hospital em Congonhas, em companhia do seu fiel irmão Edimar. Depois de quatro dias internado com diagnóstico equivocado, finalmente os médicos descobriram que ele havia tido uma dissecção da aorta abdominal, que exigia uma intervenção de emergência ainda no dia do acidente. Mas já era tarde demais e desta vez, o anjo da guarda do meu amigo não estava de plantão….

Depois da perda da Dona Anita , nossa querida vizinha, ocorrida no ano passado, lembro de nós dois, sentados lado a lado, no banco de madeira debaixo da mangueira do sítio dele:

” Geraldo, a Dona Anita se foi, mas a casa dela, as coisas dela, o sítio, tudo continua aí. Tem uma crônica da Lya Luft, que gosto muito em que ela diz que todos nós estamos numa fila. Daqui um tempo será a nossa vez e não vai ter como a gente escapar!”

“É mesmo Rui!”

Mal ele sabia que um ano depois seria a vez dele…

No seu velório, ao pegar nas suas mãos frias, senti um vazio desesperador, que só senti no meu último adeus aos meus pais, Seu Mário e Dona Mariko. Mesmo assim, firme, repeti baixinho duas vezes pra ele me ouvir onde estivesse:

” Espera por mim Geraldo, que a gente vai se encontrar um dia. Obrigado por tudo meu amigo!”

E assim, o meu amigo Geraldo ou Lalado, partiu daqui sem ter conhecido o mar…

Rui Sergio Tsukuda – junho/23

https://aposenteidessavida.com/

“Estamos todos na fila…

A cada minuto alguém deixa esse mundo pra trás. Não sabemos quantas pessoas estão na nossa frente.

Não dá pra voltar pro “fim da fila”.

Não dá pra sair da fila. Nem evitar essa fila.

Então, enquanto esperamos a nossa vez:

Faça valer a pena cada momento vivido aqui na Terra.

Tenha um propósito.

Motive pessoas!

Elogie mais, critique menos.

Faça um “ninguém” se sentir um alguém do seu lado.

Faça alguém sorrir.

Faça a diferença.

Faça amor.

Faça as pazes.

Faça com que as pessoas se sintam amadas.

Tenha tempo pra você.

Faça pequenos momentos serem grandes.

Faça tudo que tiver que fazer e vá além.

Viva novas experiências.

Prove novos sabores.

Não tenha arrependimentos por ter tentado além do que devia, por ter valorizado alguém mais do que deveria, por ter feito mais ou menos do que podia.

Tudo está no lugar certo.

As coisas só acontecem quando têm quem acontecer.

Releve.

Não guarde mágoas.

Guarde apenas os aprendizados.

Liberte o rancor.

Transborde o amor.

Doe amor.

Ame, mesmo quem não merece.

Ame, sem querer receber nada em troca.

Ame, pelo simples fato de você vibrar amor e ser amor.

Mas sempre, ame a si mesmo antes de qualquer coisa. Esteja preparado para partir a qualquer momento. Você não sabe seu lugar na Fila, então se prepare pra deixar aqui apenas boas lembranças.

Suas mãos vão embora vazias.

Não dá pra levar malas, nem bens…

Se prepare DIARIAMENTE pra levar consigo, somente aquilo que tens guardado no coração. 

Lya Luft

8 comentários em “E Lalado não conheceu o mar…

  1. Boa noite Rui, muito seria sua reflexão.
    Tudo real.
    Hoje mesmo estava equipando meu uno economy no rozan em mairinque pra viajar pra itapetininga e estava um senhor com 67 anos
    Motorista da viuva dona
    da empresa lorenzett .
    Comentamos q temos que viver o hoje como não existisse o amanhã.
    Rui meus sentimentos pela perda de seu companheiro e amigo lá do sítio.
    Sempre ligo pro meus vizinhos da minha chácara quando demoro um pouco pra ir lá.
    Gosto de ver a simplicidade em cada um deles.
    Grande Abraço Rui.
    Vamos sair da fila e pagar alguém pra guardar a nossa vez.
    Eh nessa não tem corrupção.

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  2. Meu amigo, a única certeza que a gente tem nessa vida é a de qua um dia vamos estar na frente dessa fila, e o pior, a gente não sabe quando! Mas pensando bem, não é o pior, já pensou se a gente soubesse quando iria dessa prá melhor; imagine o desespero quando estiver faltando somente alguns dias e você descobriu que não conseguiu fazer um monte de coisas importantes, acho que eu morreria antes da hora! Sendo assim a única regra da vida que não muda, vamos fazer tudo que pudermos, mas fazer coisas boas, ter bons amigos, gostar das pessoas, ficar contente quando você ver que as pessoas gostam de você também, vamos ajudar o próximo e os que não estão tão próximos assim. Vamos aproveitar ou regra da vida que não tem exceção também : A lei de causa e efeito, ou aquela que diz: O que você planta você vai colher, não tem como fugir disso.
    Um grande abraço. Quando você quizer aparecer pelas bandas de Ribeirão Preto, me dê um alô, mas traga uma cahaça mineira das boas pra gente dar uns tragaos (sem exagerar!!!).

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    1. Oi Montoro, cê tem razão, a graça é não saber o dia que a gente vai. Eu tô co cê , a lei da causa efeito num falha. Quanto a cachaça, vou comprar uma de Salinas pro cê! Abraço

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      1. Bom dia,Sr Rui
        Lindo e encantador seu texto sobre seu amigo o Lalado ( ele era meu tio irmão de minha mãe) e muito linda e verdadeiro a amizade de vocês.Este lugar chamado de Cerrado onde meus pais nasceram e passei minha infância e realmente um pedacinho do céu com toda sua simplicidade.

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      2. Oi Cleusa, fico feliz que você tenha gostado do texto. Hoje estou aqui no sítio, sinto ainda mais a falta do Lalado. Com certeza está num bom lugar agora. Obrigado

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