Como é ser um japonês (nikkei) no Brasil

Quando eu era pequeno, por pouco tempo, eu ingenuamente acreditei que Deus só tinha feito japonês e colocado na Terra.

Nascer e viver em colônia dá a impressão desta bolha. Isso deve valer também para as colônias alemãs, italianas e outras. No meu caso, eu só via japonês na minha frente. Era em casa, na casa dos meus tios, na casa da batian e na minha escolinha japonesa Megumi.

Isso mudou quando comecei a frequentar a escolinha do jardim de infância no IEL, em Londrina no Paraná. 

Lá, pela primeira vez, comecei a perceber que infelizmente éramos minoria e que Deus não tinha sido tão legal assim com a gente, não!  Na sala de 30 alunos tinha no máximo, uns três japonesinhos como eu…

Quando um amiguinho “brasileiro” cantou rindo na minha cara:

– Japonês, calabrês, foi o diabo que te fez!

– Bebê brasileiro quando nasce, o doutor dá um tapa na bunda. Já o japonês ganha um tapa na cara, por isso o Rui tem a cara achatada! hahahaha

Voltei para casa chorando naquele dia.  A dona Mariko, minha mãe, sem me dar nenhum beijinho ou abraço, foi muito dura comigo:

– Rui Sergio, levanta a cabeça meu filho, vai lá e xinga o menino também. Não quero nunca mais ver você chegando em casa chorando igual a uma menina!

Com esse empurrão da minha querida mãe, no dia seguinte, bati no moleque. Virei o brigão do maternal para desespero da tia Carminha Accorsi.

Falou mal de japonês, apanhava!

Muito cedo, aprendi o que é resiliência e que cara feia é fome ou não vem de garfo que hoje é sopa!

Acho que por isso, há uns quatro anos atrás, tive uma reação desproporcional na recepção de um hotel em Londres…

Chegamos à recepção do hotel eu e o João, meu chefe na época, que é descendente de italianos e torcedor do Palmeiras. Tivemos sorte porque haviam dois atendentes que estavam desocupados. Cada um pegou uma fila para fazer o seu check-in no hotel. 

No meu atendimento, o rapaz pediu o meu cartão de crédito para fazer um depósito caução como garantia da hospedagem, e notei também que ele pegou mais dados do meu passaporte.

Não entendi aquela desconfiança toda, já que as reservas eram pela Flytour, a agência de viagens da empresa. Mas entreguei o meu cartão a ele assim mesmo.  

Nisso, notei que o João havia terminado o seu check-in e já estava com as chaves subindo ao seu quarto. Eu surpreso perguntei a ele:

– Uai João, foi liberado rápido, hein?  No meu caso, o cartão para fazer o depósito caução está agarrando…                                             

– Caução? No meu caso não foi preciso nada disso … ele me respondeu.

Ao ouvir isso, no mesmo instante eu cresci para cima do atendente:

– Rapaz, por que eu preciso lhe dar tantas garantias e o João, meu chefe, não precisa?

– É porque ele é branco e eu tenho cara de asiático, por isso não sou tão confiável quanto ele?

O coitado do atendente, só respondeu que estava seguindo o regulamento do hotel.

Muito irritado e com a voz alterada, exigi que ele chamasse o gerente imediatamente.

Assim que o gerente chegou, expliquei-lhe o ocorrido e complementei dizendo a ele, que para mim, estava havendo uma inaceitável discriminação racial no seu hotel.

Complementei dizendo que eu sou MINORIA e que exigia o mesmo tratamento dispensado ao meu amigo – Eu sabia de antemão que falar em MINORIA abria as portas nos EUA e quem sabe isso funcionasse também na Europa…

Ao ouvir a palavra M-I-N-O-R-I-A, o gerente mudou o semblante. Até então calado e sério, abriu um sorriso me pedindo desculpas. Solícito, iria naquele mesmo instante averiguar o ocorrido com os dois atendentes.

Ao voltar, me esclareceu dizendo que quem errara tinha sido o funcionário que atendeu o João, pois ele deveria ter pedido o seu cartão de crédito também para efetuar o caução, pois  esse era o procedimento padrão a TODOS os hóspedes. Mais uma vez, me pediu desculpas pelo erro do seu subordinado.

O João, então, foi chamado de volta à recepção para completar o procedimento.

 – Desculpe chefe, eu disse meio sem graça. Ele não deve ter entendido a minha reação exagerada. Isso porque ele nunca foi minoria na vida…

Interessante essa questão de minoria, só quem pertence a uma delas entenderá o que vou dizer:

 – A primeira coisa que faço ao entrar num ambiente novo é contar quantos somos naquele lugar, a maioria das vezes a soma é um ou dois, no máximo…

Uma vez li um artigo numa revista em que uma moça negra falava a mesma coisa. No caso dela, embora os negros sejam quase maioria neste país, eles são ainda poucos em ambientes requintados.

Fazendo um paralelo entre negros e japoneses, a comparação é injusta, porque migrar ao Brasil como escravo é muito triste e revoltante. Além da condição de cativo, foram cortados deles os seus laços preciosos entre os familiares. Embora os japoneses tenham migrado a esse país pobres e sem posses, vieram livres e com as suas famílias.

Por isso sou solidário com os movimentos negros por igualdade no Brasil. Apoio as cotas nas universidades e nas empresas como forma de um resgate tardio, mas necessário e muito válido. Se hoje os EUA tiveram um presidente como Obama e agora tem a vice-presidente Kamala Harris, foi porque esse reparo social e histórico foi feito através das cotas um dia.

Para nós japoneses, o sistema de cotas seria perverso. Teríamos que devolver as vagas nas universidades…  

No cursinho Positivo em Curitiba, li na porta do banheiro:

– Enquanto você está aqui cagando, tem um japonês estudando!

Quando li essa afirmação preconceituosa, fiquei com um misto de raiva e alívio.

Ao ser apresentado pela primeira vez aos familiares da Virginia (que é branca de olhos verdes), o tio Ovídio, um dos patriarcas da família, falou assim para mim:

– Rui, você é japonês. Para mim todo japonês é inteligente, esforçado, honesto e trabalhador. Você é bem-vindo à nossa família! 

Eu apenas agradeci, fiquei feliz em saber que a boa fama de japonês já tinha chegado em Goiás.

Mas com certeza tem muito nikkei safado pegando carona nessa falsa fama que todo japonês é perfeito…

Mas acho que a coisa está mudando e para melhor …

Fábio, meu padrinho desse blog, tem 30 anos, me disse há alguns dias atrás:

– Rui, japonês é oito ou oitenta, ou é muito certinho ou é muito louco!

Uma coisa que me irrita profundamente é me falar que os japoneses são todos iguais! Nunca confundi um patrício meu, mesmo avistando-o de longe. 

Mas admito, que já usei essa afirmação preconceituosa a meu favor uma vez…

O ano era 1986. O ministro da fazenda era o Dilson Funaro, já falecido. Os pecuaristas, acusados de boicotar o plano Cruzado de Sarney, por não concordar com o congelamento dos preços da carne, retiveram no pasto o gado bovino em idade para o abate, gerando escassez deste produto em todo o Brasil. O brasileiro, de repente, se viu obrigado a abandonar o seu churrasquinho de boi e trocá-lo por frango ou peixe.

Neste período, eu estava fazendo o estágio obrigatório de seis meses do curso de engenharia química em Jaraguá do Sul – SC, que fica a 170 km de Curitiba.

O estágio em tempo integral era no Grupo Duas Rodas, que fabrica essências de alimentos, entre outros produtos. Eu morava no Hotel Nelo, localizado no centro de Jaraguá. O almoço eu fazia na empresa e o jantar eu variava entre lanches comprados em supermercado ou jantava num restaurante, que ficava ao lado do hotel.

Um dia, já cansado daquela comidinha à base de frango, peixe, sopa ou macarrão ao sugo, fui me aventurar pela cidade em busca da verdadeira carne de boi.

Quando li no letreiro à frente do estabelecimento, que se tratava de uma churrascaria, pensei:

– Quem sabe o dono da churrascaria tenha carne de boi, não custa tentar. Fazia um tempão que o bife tinha sumido do meu cardápio – eu pagaria até ágio pelo meu filé, se necessário.

Ao entrar no restaurante, notei que haviam apenas algumas mesas ocupadas. Todos os presentes me olharam de cima a embaixo, me analisando como se eu fosse um ET que tinha acabado de pousar na Terra.

Mas eu já estava acostumado com isso, pois eu era o único japonês na cidade, ou melhor, achava que era….  

Porém, antes que eu me sentasse à mesa escolhida, o dono do restaurante, um senhor gordinho loiro na casa dos 35 anos – que parecia o tio Válter do Harry Potter – veio ao meu encontro e do nada, invadiu o meu espaço aéreo me dando um abraço apertado.

Não entendi aquela sua atitude inusitada, pois os alemães são normalmente frios ao primeiro contato, mas correspondi mesmo assim, muito sem graça…

Em seguida ele falou:

– Doutor, eu lhe serei eternamente grato por ter salvado a vida do meu único filho. Se não fosse pela sua intervenção, ele teria morrido e parte de mim e da minha esposa teria partido com ele também.

Ao ouvir esse depoimento emocionado, tentei rapidamente corrigir o mal –  entendido:

– Desculpe, mas…

Contudo, ele estava tão eufórico com a minha presença no seu estabelecimento e não me permitiu continuar:

– Doutor, não precisa falar nada. Hoje, toda a sua despesa aqui é por conta da casa!  É o mínimo que eu posso fazer ao senhor, em retribuição ao que fez pelo meu filho.

– E tem mais. Vou lhe servir a melhor chuleta com filé mignon da região, que eu tenho reservada somente aos clientes especialíssimos daqui da cidade. Quais acompanhamentos o senhor quer junto com o seu filé duplo?

Passou pela minha cabeça mais uma vez, esclarecer tudo, mas tinha um diabinho insistente soprando ao meu ouvido:

– Rui, chuleta das boas e de graça! Você sempre foi certinho a vida toda. Uma vez só Deus perdoa … Você merece!

Então cedi à tentação:

– Senhor, não precisa me agradecer, fico feliz em ter ajudado o seu filho a recuperar sua saúde. Apenas cumpri o que prometi no meu juramento ao me formar em Medicina, que é acima de tudo salvar vidas!

Havia lido ou ouvido em algum lugar, que os médicos juram algo parecido com isso, em seguida complementei:

– Aceito o seu presente de bom grado. Confesso ao senhor que há um bom tempo não como um bife de boi…

Com relação aos acompanhamentos, eu gostaria de maionese de batatas com ovos apenas, batatas fritas em palitos, um pão de hambúrguer e uma Fanta laranja família litro!  E de sobremesa, gostaria de uma barra de chocolate Shot da Lacta de 200 g, que vi no seu caixa ao entrar…

Após tomar nota do meu pedido, ele perguntou:

– Como o doutor quer a chuleta?

– Entre mal – passada e ao ponto. Prefiro quando o meio da peça ainda esteja ainda rosado, por favor.

Ao chegar o meu pedido, eu me senti como pinto no lixo de tão feliz que fiquei!

Cada garfada que eu dava era como subir na escada em direção ao paraíso. Gente, eu comi, como eu comi gostoso! Quem me flagrasse naquele meu ato solitário, pensaria que eu era um Neandertal morto de fome.

Depois do jantar, já no quarto do hotel. Deitei de costas no centro da cama de casal, olhando para o teto cor de rosa, com um travesseiro apoiando a minha cabeça. Ao fechar os meus olhos, o mundo começou a girar…a girar…eu estava tonto, muito tonto.

Nunca havia me acontecido isso antes, já que tenho um estômago de tubarão branco e nada me fazia mal. Mas aquele sem dúvida tinha sido o meu recorde de ingestão calórica, até então. Por baixo, 6000 calorias, fácil.

– Matar a barra de Shot – 200g, depois da chuleta e os acompanhamentos foi demais.

– Hoje você morre Rui, que triste fim! Falei para mim mesmo.

No dia seguinte, ainda vivo, fiquei com uma culpa danada de ter sido um farsante ocasional por motivo fútil na noite anterior.  Até ao final do estágio, rezei para não topar com o tio Válter pelas ruas de Jaraguá.

Deus foi legal comigo mais uma vez!

Tive muita sorte de ter nascido em Londrina, onde tem muito japonês.  Se no Brasil hoje somos 0,5% da população brasileira; em Londrina e Maringá devemos ser uns 4%; em Bastos e Assaí uns 8%. Em BH somos só 0,001% de gatos pingados…

A coisa piora para cima de Minas, não tem japonês nem para remédio!

Em 1988, meu pai nos levou pela primeira vez à uma viagem pelo nordeste brasileiro.

Em Salvador, fiquei batendo papo com uma baiana que fazia acarajé na rua, parecida com a famosa Cira. Depois de uns dez minutos de conversa, ela me falou assim:

– Veja meu rei, admiro o japonês porque é um povo muito inteligente.

Eu sem entender, perguntei:

– Mas por que a senhora fala isso?

– Você por exemplo, está há quanto tempo aqui em Salvador?

– Uma semana, respondi.

– Então, só confirma o que eu falei. Em uma semana, você já está falando português igual a mim, que sou brasileira, e sem sotaque de estrangeiro!

– Tem que ser um povo muito inteligente mesmo!

Eu tão desconcertado que fiquei, preferi aceitar o elogio e me calar…

Para terminar… 

Estava passeando pela feira de Caruaru, que fica uns 100 km do Recife.

Um menino de uns 8 anos – ao me ver – segurou o meu braço direito e mantendo o firme na sua mão, disse assim:

 – Fica aí quietinho, viu?

Eu naquele momento tomei um susto danado, mas como o moleque aparentava não ser um assaltante, obedeci.

Aí então, ele gritou: 

– Mãe, mãe, peguei o Jaspion, mãe! O Jaspion de verdade! Vem logo antes que ele fuja.

A mãe dele veio correndo, toda afobada. A primeira coisa que ela também fez foi pegar no meu braço para ver se eu era de carne e osso…

Notei também que eles se interessavam muito pelos meus olhos, como se eu fosse um peixe exótico de aquário ou um urso panda num zoológico.  

Eu que estava de boa naquele dia falei:

– Aproveita turma, encontrar com o Jaspion original em Caruaru não é todo dia, pode pegar à vontade!

Dedico essa crônica ao Lucas Masao, meu bebê de 27 anos, que gentilmente sugeriu o tema.

Rui Sergio Tsukuda – março/21

https://aposenteidessavida.com/

14 comentários em “Como é ser um japonês (nikkei) no Brasil

  1. Eita Rui, que coisa! Um ótimo tema mesmo para uma crônica.. só quem sente na pele todas essas situações, pode falar.
    Como você bem disse, aqui em Londrina japonês não é tão raridade assim. Pode ter dado sorte em nascer aqui, mas como morou e passou por muitos lugares, sofreu com o preconceito.
    Espero que a coisa esteja melhor, e que absurdos como o que ouviu em Salvador sejam cada vez menos frequentes.
    À parte, suas crônicas sempre me arrancam grandes risadas e são muito bem compostas com as imagens que insere. Você tem mesmo jeito para o negócio, parabéns!!
    Ah, e obrigado pela menção! Sou suspeito para falar de japonês, tenho amigos da etnia que amo!
    Abraço, grande Rui!

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    1. Oi Fábio, fico feliz que você tenha gostado! e obrigado pela força .
      Pergunta pro seu vô Nei se ele conheceu minha tia do maternal Carminha Accorsi .. É do tempo dele . abraço

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  2. É, Rui, entendo sua dificuldade em ser minoria em um país que, à princípio, não seria o seu… e a diferença física não é pequena, né? Rs… Mas nada como uns “sopapos” bem dados, pra aliviar as tenções, né? Kkkkkk
    Só você mesmo…

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    1. Oi Would, saudade de você também meu mais novo colega engenheiro químico. Parabéns pela conquista. Continue passando por aqui e prestigiando o blog. E compartilhe aos seus amigos e familiares. Abraço meu amigo.

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