Fazia muito calor no corredor mal iluminado do predinho de quatro andares do bairro Renascença II em São Luís MA. Com o molho de chaves nas mãos e o suor já começando a escorrer pela testa, eu experimentava cada chave na tentativa de finalmente abrir a porta da sala do apartamento de três quartos, suíte e garagem, que estava disponível para alugar. Do outro lado do corredor, ao final dele, percebi que um homem de meia idade realizava a mesma operação na porta de um outro apartamento.
Por um instante, cada um parou de tentar achar a sua chave da fechadura e os nossos olhares se cruzaram. Mesmo com algumas gotas de suor nos meus olhos, que reduzia a nitidez da minha visão míope, consegui distinguir naquele corredor empoeirado os traços orientais do sujeito.
Ele também deve ter ficado curioso com o que vira, pois orientais são raros no Maranhão. Nos entreolhamos por mais de um minuto, ambos calados, cada qual buscando avidamente um presságio, mas sem que nenhum de nós desse um primeiro passo para sair daquela situação inoportuna.
Apesar de bem treinado para distinguir japoneses de coreanos, chineses e chutar bem com o pessoal do sudeste asiático. Pela primeira vez, o meu faro de golden retriever estava rateando. Será que é um dos nossos? Sei não …. Enquanto eu elaborava essa dúvida, ele continuava a me controlar com os olhos. Com certeza, ele estaria também na mesma hesitação que a minha.
Não aguentando mais de ansiedade, tomei a iniciativa e disparei à queima roupa no japonês elementar que tenho:
“Ojisan anata wa nihonjindesuka? ( O senhor é japonês? )”
O meu racional foi, se ele fosse japonês da gema ficaria contente em encontrar com um genérico seu nas terras do arroz de cuxá e do sururu. Se fosse um japonês do Paraguai como eu, responderia provavelmente envergonhado em português mesmo, dando mil desculpas por não saber nem o japonês beabá. Por último, se não fosse um dos nossos, não entenderia a pergunta e ficaria calado
Mas para a minha surpresa, do outro lado do corredor, eu ouvi num japonês perfeito:
“Watashi wa nihonjinde wa arimasen ( Eu não sou japonês )”
“Watashi wa kureanodesu ( Eu sou coreano )”

Nesse instante, me lembrei do meu bisavô Maeda, me contando orgulhoso quando pequeno, que chinês e coreano ele gostava de ter era a sua baioneta enfiada na barriga do infeliz, até o coitado desfalecer.
Em seguida o coreano complementou:
“Nihongo ga hanasenai ( Eu não gosto de falar japonês )”
E finalizou com um mata leão:
“Chīsai koro kara nihongo o benkyō sezaru o enakattakara ( Porque desde pequeno eu fui obrigado a aprender japonês )”
Nessa altura, ficou claríssimo para mim a fria em que eu havia me metido. O refrão do melô do marinheiro dos Paralamas do Sucesso, não saia da minha cabeça:
Entrei de gaiato no navio (oh)
Entrei, entrei
Entrei pelo cano
Entrei de gaiato no navio (oh)
Entrei, entrei
Entrei por engano
Um inimigo histórico dos meus antepassados, que com razão provavelmente tem ódio de japonês, devido às atrocidades cometidas pelos meus patrícios durante a ocupação da península Coreana. Além disso, sabe o idioma japonês porque foi obrigado a aprendê-lo. Bem aqui na minha frente, em São Luís no Maranhão? O que eu, brasileiro de Londrina PR, pé vermelhíssimo, pertencente a segunda geração de japoneses no Brasil, tem a ver com tudo isso?
Pensei seriamente em abortar a missão, apertando o botão do meu assento ejetável, fingindo que não havia entendido o que ele dissera e deixá-lo falando sozinho. Mas algo me dizia para terminar o que havia começado. Por segurança, doravante decidi não falar mais nenhuma palavra em japonês.
Então, guardei o molho de chaves no meu bolso e me dirigi calmamente até o outro lado do corredor. Estendi a minha mão direita a ele em sinal de paz, e em bom português falei:
“Muito prazer, Rui Tsukuda”
Ele ainda se recuperando da bizarra situação inicial, retribuiu o meu cumprimento e num português bem precário com forte sotaque estrangeiro, balbuciou:
” Eu sou Jun- Seo Park”
Apesar da sua dificuldade com as chaves, notei que o Sr Jun – Seo já era morador do prédio. Sem nada dizer, ele finalmente encontrou a chave da sala, abriu a porta e entrou no seu apartamento. Mas antes, discretamente fez um sinal com a mão direita para eu segui-lo imóvel adentro. Sem medo de ser feliz, entrei e fechei a porta atrás de mim.
A sala de estar estava quase vazia e sem cortinas, apenas com uma mesa retangular ao centro e algumas cadeiras. Ele se sentou numa delas, me oferecendo em seguida uma outra, para que eu me sentasse em frente a ele naquela mesa. O mesmo silêncio constrangedor do corredor, retornou àquele ambiente interno e lá permaneceu.
Procurei disfarçar o meu embaraço, observando o que conseguia avistar pela janela aberta do terreno baldio ao lado. Foi quando notei que ele havia se levantado e já trazia da cozinha uma bacia de plástico vermelha com quatro grandes pinhas maduras. Ainda sem dizer uma só palavra, pegou uma delas, abriu a fruta ao meio com as duas mãos e passou a comer a polpa branca da pinha, descartando cada semente cuidadosamente sobre a mesa, fazendo um montinho, como se aquilo fosse parte de um ritual só dele.

Mesmo sem um convite formal do meu anfitrião, entendi que era para eu me servir também da fruta do Conde. Como ele não esboçara nenhuma reação ao meu movimento em direção à bacia, ficou claro para mim que eu tinha acertado na minha suposição. Passei a imitá-lo e comecei a fazer não apenas um, mas dois montinhos de sementes sobre mesa, lado a lado, sem saber ao certo o que aquilo significava, mas buscando uma conexão com ele.
Enquanto eu comia a fruta, o meu cérebro ansiosamente tentava elaborar algo para eu dizer, mas nada surgia no meu pensamento. Nunca havia imaginado viver uma situação dessa, percebi o quanto era forte a cultura falada da minha família, passada de geração em geração. Reparei que ele também tentava processar alguma coisa, buscando uma luz ou uma inspiração para aquela situação incomum.
Ao terminar de comer a primeira fruta, cada um partiu sem pausa para a sua segunda pinha. Enquanto houvesse pinha para comer, a boca e as mãos ficariam ocupadas, disfarçando o mal estar mútuo. Enquanto houvesse bambu, haveria flecha! O meu desassossego só aumentava, porque já estávamos na segunda metade da segunda fruta e nenhuma palavra havia sido sussurrada naquela mesa até então.
Foi quando, sem aviso prévio ou sinal corporal, ele enfim, encheu-se de coragem e disse:
“Aqui em São Luís somos só nós três. Eu represento a Coreia do Sul, você o Japão e o Wang, que tem um pesque- pague, a China. Nós três, temos que nos unir na luta contra os brasileiros, porque no fundo:
Nós somos filhos do mesmo Buda! ( Watashitachi wa onaji Hotoke no kodomodesu! )”

Quando ele terminou a frase, abriu um sorriso buscando a minha contrapartida, nitidamente aliviado de ter achado por fim, algo em comum comigo e de quebra, com o chinês Wang.
Apesar da estranheza da sua afirmação anacrônica, muito sem noção como diriam meus filhos. Entendi a sua posição vinda de um imigrante vulnerável, que vive em constante sobreaviso num país desconhecido e perigoso. Então, soltei um sorriso de cumplicidade e apertei a mão do inimigo histórico dos meus antepassados com muita firmeza, selando cordialmente o nosso improvável encontro.
Quem não gostou nada disso foi o meu ditian Maeda, que com certeza no seu túmulo, posicionou o seu dedo médio em riste para mim em sinal de repudio à minha traição!

Rui Sergio Tsukuda – fevereiro/22
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